28.8.10

494. Do Livro do Desassossego–XIV

Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas – intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas — a pretensão, que têm certos homens, de que , por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem — lá entre eles, exclusos todos nós outros — os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações colectivas.

O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende- o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?

Fernando Pessoa

27.8.10

493. Do Livro do Desassossego - XIII

Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples – não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para o mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males eu produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.

Fernando Pessoa

26.8.10

492. Do Livro do Desassossego - XII

Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reformador é um homem que vê os males superficiais do mundo e se propõe a curá-los agravando os fundamentais.

Fernando Pessoa

25.8.10

491. Do Livro do Desassossego - XI

Revolucionário ou reformador — o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emeda possível.

Fernando Pessoa

23.8.10

22.8.10

488. Lá vai uma vela aberta…

Um timoneiro que se preze continua a navegar mesmo com a vela despedaçada.

Sêneca